“Na vida só há um modo de ser feliz. Viver para os outros.”

Léon Tolstoi

domingo, 23 de junho de 2013

Ele só quer estudar

Escolas não podem discriminar qualquer aluno, Mas pais de crianças com necessidades especiais sofrem para matricular seus filhos Texto: Eliana Fonseca | Fotos: Pedro Vilela
Isaac, um adolescente de 13 anos, inteligente e com notas altas, só entendeu a dimensão do que tinha há dois anos, ao ler gibi da Turma da Mônica e descobrir André, um personagem autista. Identificou de imediato suas características com as dele e quando a mãe confirmou a síndrome de Asperger, doença com espectro autista, veio o alívio. Isaac percebeu que não era o único. Quis falar para todo mundo, inclusive para os amigos da escola, porque por vezes entendia as piadas ou comentários brincalhões de forma literal, as dificuldades de sua interação social ou porque agia diferente. Quem sabe, quando seus colegas soubessem, o compreendessem e o aceitassem melhor. O problema é que ao levar a ideia à direção da instituição, a mãe foi mal recebida. Era mais uma tentativa de via crúcis iniciada por longas conversas, reforçada por cartas para oficializar o diálogo, quando viu que estava falando sozinha. A inclusão escolar de crianças e adolescentes com algum tipo de deficiência é amparada por lei há mais de 20 anos, mas não são poucos os pais que têm travado uma guerra para fazer valer os direitos dos filhos estudarem em escolas regulares, principalmente nos ensinos fundamental e médio. É uma situação camuflada em que algumas escolas particulares demoram a dar retorno sobre vagas, desistem do estímulo ao aluno, forçam situações para que os pais acabem optando por tirar o filho da escola. Nas instituições públicas, o bullying, o não acompanhamento adequado e testes não adaptados são algumas das maiores reclamações dos pais. A empresária Kátia Heroína tentou matricular o filho Andrei, 7, com síndrome de Down, em nada menos do que 15 escolas particulares. Em algumas delas, está esperando por um telefonema até hoje, em outras recebeu um não direto, em todas ofereceu para pagar, do próprio bolso, uma estagiária – garantida em lei e que, portanto, com custo arcado pela escola – para acompanhar o filho. Nos anos anteriores, Andrei estudou em uma instituição que adorava, mas gradualmente, segundo a mãe, a falta de preparo ficou clara e ele começou a ser excluído das excursões, a ficar isolado. A gota d’água foi quando Kátia insistiu com a escola para que o filho repetisse o terceiro período infantil, por não considerar sua evolução escolar compatível com a próxima etapa de estudo, o que foi confirmado por laudo de especialistas. A instituição bateu o pé e disse que só o aceitaria se fosse matriculado no ensino fundamental. A queda de braços terminou com Kátia chegando com o filho para um dia de aula e sendo avisada que nenhum professor, tampouco coordenador estava na escola. Todos ensaiavam para a formatura. Não havia ninguém para cuidar de Andrei. “Chamei a polícia, fui à delegacia especializada, fiz boletim de ocorrência. Nada aconteceu com a escola até hoje. Por que há uma lei que não é cumprida? Quando fui este ano às escolas, mesmo falando da lei, ninguém se intimidou na negativa. Uma diretora chegou a falar que já tinha outros três processos por causa de inclusão escolar”, conta Kátia. Preocupados com os casos de Kátia, de Isaac e de tantos outros que são denunciados diariamente, uma equipe de profissionais da educação e da saúde de Belo Horizonte criou o Fórum de Inclusão Escolar. É uma forma de não só debater as dificuldades de inserção, como também dar visibilidade à questão. A psicopedagoga e psicanalista Cristina Silveira, que integra o Fórum, afirma que o primeiro impacto no grupo foi a percepção de que as escolas privilegiam um discurso de aceitação à diversidade, embora não incorporem mudanças em sua rotina, ou seja, não se modificam para dar conta das especificidades de aprendizagem e desenvolvimento de todos os alunos. Cristina observa que, se as escolas se adequaram à acessibilidade arquitetônica e física em obediência à Constituição e às leis federais, o mesmo não ocorreu com a educação inclusiva. O descumprimento fica evidente. “Nos fóruns, detectamos várias dificuldades para a efetiva inclusão, como a falta de empenho da escola no processo de alfabetização dos deficientes”, diz Cristina. Essa é apenas mais de uma dezena de problemas. Entre eles, a exigência das escolas de maior porte de autonomia e independência das crianças deficientes, o que dificulta sua efetiva inclusão e aprendizado; falta de preparo e atualização dos professores para as necessidades pedagógicas desses alunos, além de falhas e equívocos nos sistemas de avaliação e falta de política para identificação e contenção do bullying. O reflexo maior na vida do estudante é que a escola não cumpre o seu papel e isso gera uma série de perdas, as principais delas são que o aluno não desenvolve o seu potencial, perde na socialização e o pior, vai ser objeto de bullying dos colegas. “A escola faz parte das crianças e a função delas é ser estudante. E para as crianças que têm alguma deficiência ou dificuldade, a escola não é o lugar de aprender. Faz parte do tratamento”, analisa o psiquiatra Walter Camargos, que também integra o Fórum de Inclusão Escolar. Para ele, essas pessoas precisam que o sistema seja modificado. “Na escola tradicional, a criança é que se adapta à escola. Já no caso da pessoa com dificuldade, é a escola que tem que se adaptar para que ela consiga desenvolver todo o seu potencial cognitivo.” Se fossem cumpridas e fiscalizadas, as leis que amparam a educação inclusiva fariam do país referência no mundo. Não é o caso. O juiz Michel Curi diz que, apesar de a legislação definir crimes e prever reclusão de um a quatro anos, além de multa, para quem recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino, as instituições públicas e privadas não cumprem o que determina a lei. “É lamentável que isso ocorra, mas é o que vem acontecendo. Ante o descumprimento, vemos um processo de judicialização, em que os cidadãos ajuízam uma ação para fazer valer o seu direito.” Ele afirma que, como essas questões não podem esperar até o final do processo, são concedidas liminares ou medidas de urgência e cautelares para que as crianças possam voltar à sala de aula.
O próprio Curi reconhece que a judicialização está longe de ser o ideal para esses casos. A defensora pública Fernanda Cristiane Fernandes Milagres afirma que o primeiro caminho é a tentativa de diálogo entre os pais e escola. Se houver uma negativa, a família que tem o perfil de atendimento da Defensoria Pública, pode procurar orientações. A primeira ação é extrajudicial, quando o órgão chama a escola para esclarecimentos e, se for o caso, pode marcar mediação. Os pais que têm procurado a Defensoria Especializada de Proteção ao Idoso e Pessoa com Deficiência chegam com diversos tipos de reclamação. A principal é que não há uma negativa direta, mas a escola faz teste de triagem em que esses alunos não conseguem a aprovação. Esses testes são passíveis de questionamento. “Mas nosso principal objetivo é efetivar um diálogo, porque o maior prejudicado em embate judicial é o próprio aluno. Se não conseguirmos solucionar dessa forma, aí há encaminhamento para medidas mais graves”, afirma a defensora. A mãe de Isaac, a funcionária pública Ruth Mara de Oliveira Gomes, fez de tudo para efetivar um diálogo com a escola. Primeiro, seu filho sofreu bullying – tinha a mochila jogada no lixo, chegava arranhado, não conseguia comer o lanche, porque era tomado pelos colegas. “Tentei conversar com professores, coordenadores, mas nada adiantou.” A mudança para outra escola com um trabalho em educação inclusiva parecia ser a solução, mas eis que a profissional responsável pela área foi demitida pouco tempo depois. Isaac voltou a sofrer bullying também dos colegas da nova escola. “Pedi à psicopedagoga do meu filho que fosse à escola e se reunisse com professor e coordenadores. Depois fiz uma carta relatando tudo o que o meu filho estava passando. Por fim, propus uma conversa franca em sala de aula, com o consentimento de Isaac, para que os colegas soubessem sobre o Asperger”, conta Ruth. Teve resposta zero. O próprio Isaac chegou a comentar com a mãe que não acreditava em mudanças, já que os colegas que o incomodavam não ficavam nem sem o recreio como castigo. O limite veio com agressão a Isaac por um colega e o recebimento de notificação da escola. Ruth ficou indignada porque parecia que a instituição havia se esquecido da tentativa de diálogo. Não teve dúvidas, procurou o Ministério Público, que enviou ofício à escola pedindo esclarecimentos. “A partir dali tudo mudou. Eles conversaram com os alunos da sala do Isaac e a relação do meu filho com eles melhorou muito”, diz. Mas o elo estava quebrado. Ruth procurou outra escola e está encantada com a recepção e o preparo da instituição quanto à educação inclusiva. “Vejo que há escolas que não conseguem implantar a educação inclusiva por falta de interesse.” Ao analisar o estudo inclusivo em BH, Walter Camargos diz que vê um desequilíbrio entre o ensino infantil e o escolar. Para ele, o ensino infantil de crianças de até 5 anos para o processo de inclusão é ótimo na maioria das escolas. “Já o escolar, que é ainda na estrutura antiga, não funciona tão bem. Há uma série de estruturas, movimentos, discussões, discursos maravilhosos, mas na prática, não é tão bom.” No interior, pela experiência e diálogos com profissionais, tem percebido que em algumas cidades o processo de inclusão está fortalecido. Em Belo Horizonte, a Secretaria Municipal de Educação, segundo a coordenadora do Núcleo de Inclusão Escolar da Pessoa com Deficiência, Patrícia Cunha, conta com atendimento educacional especializado, com 59 professores que atendem os alunos com deficiência no turno oposto ao da escola. O profissional elabora um plano individual de atendimento de cada aluno e trabalha com escola e professores. Há também 1.043 auxiliares de apoio à inclusão contratados. Questionada sobre os problemas apontados pela defensora pública Fernanda Milagres quanto a escolas públicas, que diziam respeito ao bullying, ao acompanhamento inadequado e testes não adaptados, Patrícia rechaçou todos. Além da qualificação dos professores que recebem formação básica em educação inclusiva, reforçada com formações específicas por áreas, diz que não há nenhuma tensão ou aceno de preconceito nas escolas e que os testes e avaliações levam em conta todas as orientações desenvolvidas durante o atendimento. “Essa é uma estratégia tanto para que o aluno tenha acessibilidade quanto de orientação do planejamento pedagógico ao longo do ano. Cada aluno é um, por isso a estratégia bem individualizada.” Não é o que uma professora da rede municipal, com 23 anos de experiência na sala de aula e em direção de escola, que prefere não se identificar, relata sobre a experiência que tem tido no local onde trabalha. “É certo que a prefeitura investiu muito em equipamentos, acessibilidade, mas quando se trata de inclusão intelectual, o rei está nu”, analisa. Ela diz que qualquer pai que matricular seu filho numa escola regular não terá projeto específico para a dificuldade de seu filho. “O que os outros estiverem estudando será o que o aluno com algum tipo de deficiência receberá. Minha experiência nesses últimos anos me leva a dizer que esse aluno não terá nenhum tipo de promoção ou avanço intelectual.” A professora diz que as três escolas especiais da prefeitura, a Frei Leopoldo, da Regional Centro-Sul Santo Antônio e de Venda Nova, não podem matricular nenhum aluno com deficiência desde 2006. “O discurso da prefeitura de Belo Horizonte é um, mas a prática é outra. Sei que, diariamente, pais vão até essas escolas tentando matricular seus filhos. Não conseguem. Nossa orientação é que procurem a Justiça, o único meio para efetivar essa matrícula”, conta. No interior, a professora e psicopedagoga Aparecida Miranda Paulino, de Soledade de Minas, no Sul do estado, conta que, por iniciativa própria, começou sua qualificação. Em 2005, fez pós-graduação com ênfase em educação inclusiva e começou implantá-la na escola pública em que trabalhava. O resultado foi ótimo. “As crianças com algum tipo de deficiência passaram a se sentir melhor na escola do que em casa. Esse trabalho proporcionou melhora de autoestima dessas crianças, que, por vezes, só conseguiam se comunicar quando estavam na escola”, diz. Porém, o fato mais desafiante, na opinião de Aparecida, é o convencimento dos professores do potencial dos alunos com deficiência. “A maioria não acredita que aquela criança vá ter desenvolvimento escolar. É preciso investir no professor que tem medo de lidar com a diversidade e está certo, já que não recebe qualquer qualificação ou apoio”, observa. A Secretaria de Estado da Educação foi procurada, mas não retornou até o fechamento desta edição. Fonte: http://www.revistaviverbrasil.com.br

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