“Na vida só há um modo de ser feliz. Viver para os outros.”
Léon Tolstoi
terça-feira, 2 de julho de 2013
INCLUSÃO E A FORMAÇÃO DE LUGARES: DO PERTENCIMENTO À ESTIGMATIZAÇÃO
Bárbara Cristina Farina e
Daiana de Mello Trarbach
PRIMEIRAS PALAVRAS
A consciência de que todo indivíduo possui uma identidade única, que o
diferencia dos demais ao mesmo tempo em que o posiciona dentro de uma rede social
de poder alicerçada na conceituação socialmente acordada de normalidade, traz à tona a
discussão a respeito da padronização tão valorizada nestes tempos globais. Almejada
pelos meios produtivos, esta homogeneidade idealizada entra em oposição à inclusão
requerida pela sociedade que, ancorada em princípios morais como a igualdade e a
solidariedade, busca a sua própria constituição, de forma que os meios de vida sejam
mais equilibrados para todos.
Este conflito de interesses se reflete no ambiente escolar que, historicamente,
tem assumido o papel social de articulador de elos políticos e econômicos, de renovador
e intensificador dos paradigmas sociais. O resultado é que a escola passa a refletir os
paradoxos existentes na sociedade, em que os objetivos práticos e teóricos não são
coincidentes e em que a exclusão é sempre fortalecida. Assim, a discussão que se
pretende desenvolver tem como objetivo analisar o espaço geográfico escolar
pretensamente inclusivo, utilizando como conceito operacional para a sua compreensão
o estudo do lugar. O lugar será compreendido como a expressão do espaço em uma escala pontual, no qual as vivências acontecem e os cotidianos são repartidos, tendo
sido escolhido por demonstrar, de forma mais eficaz, as relações sociais estabelecidas e
as formas de organização espacial que se dão a partir dele.
Dentro desta perspectiva, dois olhares serão lançados: o primeiro, procurando
ressaltar as relações sociais estabelecidas em um ambiente de inclusão, no qual a
questão da estigmatização e do preconceito ganham forma, contrariando a própria
lógica da convivência em uma diversidade significativa; e o segundo, como causa consequência do primeiro, analisando as formas de apropriação do espaço pelos
diferentes grupos formados, resultando em sentimentos de maior ou menor
pertencimento ao ambiente escolar. As duas ópticas se relacionam, diretamente, com a
maior ou menor eficácia dos processos inclusivos que, mais do que uma questão formal,
devem se expressar de forma consistente e reflexiva.
A discussão será estabelecida a partir de um aparato teórico, alicerçado em
diferentes áreas do conhecimento, dentre as quais a sociologia, a psicologia social e, é
claro, a geografia. Estará respaldada, de forma mais direta, nas monografias construídas
pelas autoras como pré-requisito para a conclusão do curso de Especialização em
Educação Especial e Processos Inclusivos, realizado pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e finalizado no ano de 2009. Antes que as duas ópticas sejam expostas,
se torna necessário refletir, ainda que rapidamente, sobre o lugar, o seu significado e a
sua valia para este tipo de discussão.
O LUGAR DO 'LUGAR' NA INCLUSÃO
O espaço geográfico, objeto de estudo da Geografia, segundo Milton Santos
(1997), seria constituído por um sistema de objetos e de ações, representando o
somatório de diferentes tempos através da sobreposição das marcas/cicatrizes espaciais
deixadas como herança ao longo dos anos. Nesta perspectiva, e considerando as
diferentes formas segundo as quais pode ser concebido, se optou por lançar um olhar
mais intimista sobre o espaço geográfico sala de aula, cabendo discuti-lo a partir do
conceito operacional 'lugar'.
O lugar é um conceito que garante uma abordagem mais sensível sobre as
individualidades e as vivências, servindo como eixo norteador para as reflexões que este
trabalho propõe. Pelo lugar, é possível resgatar a expressão pontual de fenômenos
globais que influenciam a sociedade; de forma mais exata, pela sua análise se torna
possível avaliar a expressão destes fenômenos em espaços mais específicos, como a escola e, conseqüentemente, os indivíduos que de ela participam. Assim, se entende por
lugar o espaço com suas singularidades, refletindo as relações de poder que se traduzem
em vínculos territoriais, o que foi esquematizado por Milton Santos como
um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições
- cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual
exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a
contigüidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o
confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma
referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens
precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das
paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais
diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. (SANTOS,
1997, p. 15)
É preciso considerar, no entanto, que “[..] o dia-a-dia dos lugares entra em
contradição com este mundo globalizado, que, na realidade, é apenas economicamente
e competitivamente globalizado, mas não integrado.” (AIGNER, p. 211 In REGO,
2006). Evidencia-se, deste modo, que nem todos os locais estão integrados da mesma
forma a esta rede global, de forma que as suas particularidades são influenciadas, mas
mantêm, de alguma forma, a sua própria identidade.
Da interação entre o global e o local, se tem a organização do lugar, que reflete
as experiências do indivíduo com o mundo (envolvendo as dimensões naturais e sociais,
que viram realidade pela interpretação, pela imaginação e pela projeção, sem, no
entanto, deixar de ser material). Segundo Suertegaray (2000), desta composição básica
do lugar surgiriam os sentimentos de pertencimento ou não do indivíduo em relação ao
espaço. Como resultado destas experiências significativas, surgiria a Geograficidade
que seria a dimensão espacial da vivência humana, seria o mundo vivido.
A constituição do lugar decorre da sua ocupação e da sua transformação
permitindo, assim, que vários indivíduos ocupem o mesmo espaço fisicamente, embora
constituindo lugares diferentes. Para tanto, esta diferenciação dos lugares se dá através
das distintas relações estabelecidas entre os indivíduos, os seus grupos e os elementos
espaciais. Assim, a transformação deste espaço não será uma construção solitária, pois é
justamente através da interação entre os diferentes lugares individuais que se constituirá
o lugar da coletividade, lugares, portanto, coincidentes. Todavia este espaço não será,
obrigatoriamente, apropriado de forma efetiva ou igualitária por todos, considerando
que as possibilidades de acesso serão diferenciadas, resultando em diferentes formas de
adaptação e, conseqüentemente, em diferentes lugares e sentimentos de pertencimento
ou não a eles.
Estas diferentes ocupações possuem como resultado o fato de o mundo ser
composto por 'lugares' essenciais e por outros transitórios. Estes últimos são lugares
ocupados sem o estabelecimento de vínculos, sendo, portanto, espaços inertes, sem
significado e sem identificação, definidos, assim, como 'não-lugares'. Para CALLAI
(2003, p. 63), “[..] são espaços vazios de conteúdo, sem história. São neutros, são
transitórios, em geral, de uma arquitetura de desnudamento [..]. Podem também [..] ser
espaços que perderam sua identidade [..]”. Um mesmo ambiente, portanto, pode se
constituir ao mesmo tempo em um 'lugar' e em um 'não-lugar', conforme o indivíduo e a
sua forma de apropriação. Uma praça, por exemplo, pode ser um 'lugar' para as crianças
durante o dia e à noite se caracterizar como 'não-lugar', quando passa a ser 'lugar' para a
marginalidade, pois as relações de poder e de pertencimento se modificam ao longo do
dia, como também se modifica a função local.
Os sentimentos de pertencimento, entretanto, teriam caráter transitório, pois
decorrem do estado emocional, cultural e social do indivíduo naquele local, com aquele
grupo, naquele momento, caracterizando a Topofilia. A exclusão, portanto, decorre de
mecanismos de perda de identidade, de não construção do espaço e, portanto, de não
conquista do seu 'lugar' no mundo, configurando a Topofobia. Ambos estados de
interação com o espaço (a topofilia e a topofobia) não são permanentes, podendo ser
revertidas.
É o lugar então o real agente sedimentador do processo da inclusão e da
exclusão. Tudo dependendo de como se estabelecem as correlações de forças
de seus componentes sociais dentro da conexão em rede. Isto porque natureza
e poder da força vêm dessa característica de ser a um só tempo
horizontalidade e verticalidade. (MOREIRA, 2007, p.13)
Neste sentido, o conceito de lugar ultrapassa a sua própria força de expressão, de
forma que ocupar o 'seu lugar' passa a caracterizar a inserção ou não do indivíduo no
mundo. Adquire, por isso, um viés existencialista; afinal, somente se passa a fazer parte
do todo no momento em que este pode ser modificado, ou seja, que há sobre ele
exercício de poder. Esta reflexão a respeito dos lugares nos leva a considerar a
importância da organização social da sala de aula pelos seus diferentes atores, nos
fazendo questionar a forma como ocorre a construção do 'lugar' pelo aluno com necessidades educacional especiais neste ambiente, tendo em vista que, embora estejam
fisicamente presentes, não lhe é permitida a possibilidade de modificar os espaços, ou
seja, de exercer a sua própria cidadania.
Globalização e educação inclusiva
Compreender o lugar é indispensável para entender a conexão entre o local e o
global. Além disso, é na escola que os indivíduos começam a definir o seu espaço no
mundo, porque é através da sala de aula que se farão os primeiros contatos com a
sociedade além da família, proporcionando a integração com os padrões e o modo-devida globalizado. Por fazer parte deste mundo globalizado, ou melhor, por ter sido um
dos elos desta rede global é que, historicamente, a escola tem sido construída e moldada
pelos princípios de uma sociedade mercantil. Segundo estes princípios, a normalidade
tem os seus padrões definidos, e tudo o que se afasta desta idealização passa a ser
desvalorizado.
A internacionalização e a imposição de valores culturais interferem
diariamente nos espaços locais, e esses assumem enorme importância no
processo chamado de globalização porque é o cotidiano imediato, vivido
localmente e agora internacionalizado; portanto, objeto de uma razão global.”
(AIGNER, p.211 In REGO, 2006)
Devemos considerar que as identidades e os papéis (individuais e sociais) são
construídos sob os moldes desta 'normalidade', gerados por esta sociedade globalizada e
sustentados pela instituição escolar, sendo o processo educativo o responsável pela
formação da mão de obra adequada a esta normatização.
Contudo, a Constituição vigente e os estudos atuais do campo da educação têm
apontado para uma direção diferente. O direito de que cada um se desenvolva segundo
as suas próprias potencialidades, recebendo iguais possibilidades de crescimento,
aparece como um imperativo e como um princípio mínimo de humanidade. Fortalecese, assim, as tendências que levam a uma educação alicerçada nos princípios inclusivos.
Desta forma, o antagonismo está posto, justamente porque a escola se divide entre o que
lhe é moralmente correto, e o que lhe é cobrado pelos meios de poder mais influentes.
O resultado é que a forma como as instituições escolares têm se adaptado a este
novo entendimento sobre a educação, nem sempre tem resultado em êxito. A sala de
aula, ao mesmo tempo em que auxilia na instrumentação do indivíduo para a criação de
seu 'lugar' no mundo, procura adaptá-lo a uma sociedade que exige uma bagagem da bagagem de habilidades e possibilidades que nem
sempre o aluno com necessidades especiais é
capaz de fornecer. Assim, as crianças com necessidades educacionais especiais acabam
não formando os seus 'lugares' na sala de aula regular. Ao não se apropriarem deste
espaço, moldam a outra categoria geográfica possível dentro deste viés, o 'não-lugar',
que segundo CARLOS (2006, p.63) seria:
[..] um novo espaço baseado na não-identidade e no não-reconhecimento; que
é o que estamos caracterizando como “não-lugar”. O não-lugar, pois longe de
se criar uma identidade produz-se mercadorias para serem consumidas em
todos os momentos da vida, dentro e fora da fábrica, dentro e fora do
ambiente de trabalho, nos momentos de trabalho e de não-trabalho. [..]
A identificação territorial, necessária para a composição do lugar (que por sua
vez ocorrerá através da apropriação deste espaço), será reflexo da sua auto percepção
como cidadão (neste contexto, como aluno) e, assim, como agente modificador do meio
no qual se encontra. A construção destes vínculos, por sua vez, perpassa pelo sentimento
de pertencimento, que está relacionado, por sua vez, às inscrições históricas, sociais e
culturais de cada indivíduo ou grupo e ao espaço que ocupam, se refletindo na inclusão
no ambiente escolar. Neste processo de constituição, os indivíduos criam 'fronteiras'
entre os seus 'lugares' e os 'lugares' dos outros, que por sua vez podem ser dissolvidas ou
enrijecidas ao interagirem. Forma-se, assim, uma 'zona de influência' entre eles (que
tende a ter seus princípios definidos pelo grupo de maior poder, que, neste caso,
converge com o modelo padronizado globalmente) compondo um 'lugar comum'.
Os alunos com necessidades educacionais especiais, entretanto (por deterem
menor poder social), serão forçados a se enquadrar neste lugar comum forjado por este
sistema padrão, sendo a ele incorporados, sem que haja, no entanto, a consecutiva
apropriação ou o exercício de poder deste grupo minoritário sobre o espaço. O resultado
é que este grupo permanece inconsciente neste processo de 'valorização da
individualidade' e, portanto, excluído da rede social na qual estão inseridos.
A condição humana de estar no espaço pressupõe ter acesso ao Lugar,
relacionar-se, realizar a transformação e ter a consciência disto. Assim, se
levarmos em considerações mais amplas referências das integrações sociais,
tais vínculos podem ser apreendidos, fundamentalmente, por meio de três
expressões: apropriação, valorização e consciência. (HEIDRICH, p.21 In
REGO, 2006)
A política inclusiva, portanto, nas suas atuais configurações (e em algumas escolas) acaba por ser excludente ao inserir nestes espaços formatados indivíduos que
destoam do restante do grupo. Certamente que a ruptura com esta ideologia dominante e
segregacionista deve ocorrer e que algumas crianças serão afetadas para que estes ciclos
de transformações ocorram primeiramente nas escolas e, posteriormente, na sociedade.
Entretanto, devemos estar conscientes como este processo de transição está ocorrendo
para que possamos amenizar estas conseqüências.
É evidente que a cultura padrão – enraizada nas escolas, nas empresas e na
sociedade – é co-responsável por esta exclusão, ao influenciar currículos e regras
escolares, moldar os resultados esperados pelas famílias, estimulando a
competitividade, balizando o tempo e incorporando metas empresariais ao ambiente
escolar. Assim, mantemos em nossas salas de aula uma lógica perversa, na qual os
alunos com necessidades educacionais especiais, mesmo introduzidos nas escolas
regulares, permanecem em uma dimensão a parte, necessitando de outros tempos de
outras organizações que nem sempre são satisfeitas. Álvaro Heidrich (p.23 In REGO,
2006) afirma que esta exclusão “[..] consiste na perda de sua participação na
integração, de não ter participação nos interesses e necessidades da integração,
tampouco do acolhimento e suas significações e valores.[..]”. Excluí-se, portanto,
quando a parte não faz parte, quando através de ações ou omissões não se permite que
um indivíduo se inclua de fato, mesmo estando fisicamente presente; assim incluir
ultrapassa o aspecto físico adquirindo um sentido emocional e psicosocial.
A sala de aula, nestes tempos de globalização e de padronização, tem se
constituído de muitos 'lugares' e 'não-lugares', restando para os alunos e professores a
responsabilidade de desconstruir e reconfigurar as fronteiras que se aproximam,
promovendo a troca entre grupos e facilitando a sua aproximação. Entretanto, o que
presenciamos são professores e alunos não versando a mesma língua, tornando os
signos expostos indecifráveis, fazendo com que a diferença seja um problema e não
uma vantagem pedagógica, resultando deste modo em exclusão.
[..] deve-se dizer que os vínculos territoriais são bastante frágeis s na situação de
exclusão, como obviamente seria de esperar. A relação com o espaço como
apropriação apresenta uma condição bastante efêmera, as práticas de
valorização são bastantes limitadas. (HEIDRICH, p.41 In REGO, 2006)
É imprescindível, por isso, interpretar a organização geopolítica do espaço físico
e o porque da não ocupação destes 'lugares' de forma igualitária por seus atores. Compreendê-lo é uma busca pelo conhecimento da cultura, da história que impregna
cada classe, cada vão da sala. Certamente, as adaptações exigidas pelas práticas
inclusivas são importantes tanto do ponto de vista da acessibilidade quanto do contexto
da possibilidade do domínio espacial. Essa compreensão, aliada às necessárias
adaptações, tende a diminuir a desigualdade, permitindo a aproximação de um contexto
em que as condições de acesso e permanência nos diferentes espaços sejam mais
igualitários
Desta forma, se torna possível a exploração das diferentes habilidades que os
alunos (em sua diversidade). Entretanto, a educação inclusiva transgride o espaço físico
e almeja que todos os indivíduos possam preenchê-lo de significados. Há, por
conseguinte, necessidade de adaptações não apenas de ordem física, mas s essencialmente
de ordem pedagógica, tendo em vista que o currículo e os planos de estudo pouco muito
se assemelham aos da escola moderna. Afinal,
A consciência do espaço refere-se a um sentimento de pertencimento a um
lugar ou território, consiste no campo da identidade e relaciona-se com a
intencionalidade com a qual faz a representação de nossas ligações,
constroem-se os mitos e definem os agrupamentos humanos. (HEIDRICH, p.
21 In REGO, 2006)
Observando a disposição dos alunos, dos objetos na sala de aula, onde muitos
dos alunos inclusivos são esquecidos, fazendo com que seus 'lugares' não sejam
constituídos por não serem tomados por estes indivíduos, percebemos que este 'não
pertencer' toma forma. Uma vez inseridos 'desestruturam a ordem', resgatam a sua
identidade de aluno e os sentidos de pertencimento. Contudo, não se pode pensar que
este pertencer e não pertencer conforma uma lógica desequilibrada. Ao contrário, por
mais perversa que se configure, a lógica da inclusão e da exclusão espacial respondem a
uma necessidade social de categorização e eleição de modelos, que são concretizados
pela difusão de mitos, estigmatizações e preconceitos. Mais do que a garantia da
organização social, os preconceitos garantem a manutenção das relações de micro poder
e dificultam o desenvolvimento de uma educação alicerçada em princípios inclusivos.
O Lugar e o Preconceito
O Lugar é, ao mesmo tempo, material e subjetivo, o que torna a compreensão do
espaço algo íntimo, algo cotidiano e profundamente ligado à vivência e à e à realidade de
seus atores, ainda que estreitamente relacionado a fenômenos de escala global. Sendo assim, parece o instrumento ideal para o estudo, dentro de uma óptica geográfica, da
formação de diversos dispositivos éticos e morais (dentre os quais o próprio
Preconceito), por responder, ao mesmo tempo, a dinâmicas de ordem mais e menos
gerais: de questões sociais (que têm origem no processo de socialização) à sua
expressão individual.
Segundo RELPH, o Lugar se refere a um “tipo de experiência e envolvimento
com o mundo, à necessidade de raízes e de segurança” (1979, p. 17), que são
características que estão na base da formação do Preconceito, podendo ser resumidas
como a necessidade de pertencimento a algo, tanto pela auto-afirmação quanto pela
sobrevivência. Percebe-se, assim, uma necessidade e uma interpretação individual
(relacionada ao sujeito em questão), mas que reflete um processo global alicerçado nos
parâmetros de busca e aproximação da normalidade. Referindo-se à Milton Santos,
Suertegaray propõem:
Resulta daqui sua visão de mundo vivido local-global. Para o autor, o o lugar
expressa relações de ordem objetiva em articulação com relações subjetivas,
relações verticais resultado do poder hegemônico, imbricadas com relações
horizontais de coexistência e resistência. (2000, p. 26)
Assim, haveriam relações horizontais, mais próximas da individualidade, que
estariam inseridas em um contexto maior, verticalizado, do qual surgiriam alguns dos
princípios que regeriam as primeiras e demarcariam a normalidade. É preciso resgatar o
que imprime uma espécie de padronização em todos os Lugares, que seriam as lógicas
verticais que, pela busca de determinados objetivos comuns da sociedade, acabam
fazendo com que todos os espaços, de alguma forma, se assemelhem ou busquem uma
aproximação.
O processo de Globalização, como já foi visto, pode ser considerado um dos
elementos mais importantes dentro deste contexto, tendo em vista que é um fenômeno
em escala global e que coordena não apenas as relações mercadológicas e econômicas,
mas as dinâmicas relacionadas à política, ao meio ambiente, à cultura e ao modo-devida geral da população mundial. Mais do que isso, a Globalização empresta à
sociedade os princípios que devem reger a organização de forma geral, bem como
influencia a composição dos objetivos individuais de cada sujeito.
Só que a globalização não é apenas a existência desse novo sistema de
técnicas. Ela é também o resultado das ações que asseguram a emergência de um mercado dito global, responsável pelo essencial dos processos políticos
atualmente eficazes. [..] Um mercado global utilizando esse sistema de
técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa. (SANTOS, 2008, p.
24)
O Lugar expressa, assim, o global, não de forma totalmente direta ou inflexível,
mas adaptada às particularidades locais. Contudo, estas particularidades
(horizontalidades) não são capazes de se impor sobre as dinâmicas verticais, atuando
mais como modelagens de um conjunto comum e global de ideais, princípios e
organizações.
Segundo Milton Santos (2008), os processos globais são marcados pela
perversidade, que seria composta por alguns elementos-chave verticalizados,
considerados pelo autor como formas de violência, que coordenam, em última instância,
a própria lógica de organização global. Dentre os elementos-chave, os principais seriam
a informação, o dinheiro, a competitividade e o consumo, que modelariam as relações
(em todas as instâncias) dentro da lógica globalizante.
A cultura verticalizada e hegemônica justifica e fortalece os quatro elementos chaves da Globalização, possibilitando a manutenção da organização social atual,
marcada pela exclusão, pela desigualdade e pela falta de solidariedade. Assim, quanto
maior a possibilidade do consumo (ou seja, quanto maior a concentração de dinheiro) – que se dá pela vitória nas batalhas competitivas – maior o poder e o domínio das fontes
de informação, reafirmando (em um ciclo mutuamente reforçador) tanto os elementoschave, quanto a própria teia social.
A categorização social se encaixa neste ciclo. Ou a pessoa está no topo da teia
social, produzindo e consumindo, ou está fora do espaço de privilégios e direitos. A
forma de garantir a manutenção deste status, sem que a culpa seja instalada, é a
invalidação do outro, através da criação de preconceitos e estigmatizações, ou seja, da
coisificação do outro. Sendo um ser menor, de menor valor, de menor humanidade, nada
mais justo do que estar na periferia da teia, garantindo a sua sustentação sem aproveitar
dos seus benefícios. O preconceito seria justamente a compreensão do outro através de
uma filiação ao pensamento comum, sem que haja uma reflexão pessoal sobre ele.
Considerando que tanto a cultura quanto o processo de socialização tem, como
base, a luta pela sobrevivência, o Preconceito seria uma forma de responder a esta
dinâmica através do combate às questões ameaçadoras, necessitando, para ser
compreendido, de “[..] conceitos da Psicologia e da Sociologia, dentro de uma perspectiva histórica.” (CROCHIK, 2006, p. 13). Portanto, o Preconceito seria, em
certa instância, natural e intrínseco ao ser humano, o que não significa que ele deva ser
encarado como fenômeno dado e definitivo. Até mesmo por ser uma questão cultural, o
Preconceito pode ser alterado tanto pela mudança de seu alvo, quanto pela mudança das
verdades sociais que o originam.
O Preconceito faz mais referência ao preconceituoso do que ao seu alvo, pois
responderia a questões intrínsecas ao indivíduo (inseguranças, fragilidades, desejos etc).
Estas questões receberiam algum tipo de conforto a partir da negação de determinados
grupos. Ainda assim, a questão social não perde importância, pois é nela que se gera a
insegurança, a sensação de ameaça e a luta pela sobrevivência, bem como a
possibilidade de formação de grupos, de identidade, de renegação ao que é estranho e de
manutenção das relações de micro poder.
Tomando por referência Lígia do Amaral (2002), o Preconceito é definido como
“configurações psíquicas consteladas de forma independente de experiências diretas”
(p. 238). Segundo a autora, o Preconceito seria uma expressão individual de um
fenômeno ou de uma padronização social. Assim, ao mesmo tempo em que dependeria
da elaboração mental do indivíduo, o Preconceito estaria respondendo a uma dinâmica
social na qual a normalidade se afirmaria através da exposição da anormalidade.
Todos sabemos (embora nem todos o confessemos) que em nosso contexto
social esse tipo ideal – que, na verdade, faz o papel de um espelho virtual e
generoso de nós mesmos – corresponde, no mínimo, a um ser: jovem, do
gênero masculino, branco, cristão, heterossexual, física e mentalmente
perfeito, belo e produtivo. A aproximação ou semelhança com essa
idealização em sua totalidade ou particularidades é perseguida, consciente ou
inconscientemente, por todos nós, uma vez que o afastamento dela caracteriza
a diferença significativa, o desvio, a anormalidade. E o fato é que muitos e
muitos de nós, embora não correspondendo a esse protótipo ideologicamente
construído, o utilizamos em nosso cotidiano para a categorização/validação
do outro. (1998, p. 14)
É possível adicionar a fala da autora que, a medida que se categoriza e se valida
ou não o outro, se realiza o mesmo processo em relação a si próprio. Assim, ainda que o
indivíduo não corresponda ao tipo ideal acima exposto, a sua segurança e o seu
pertencimento/aproximação deste grupo idealizado podem ser validados pela afirmação
do distanciamento dos demais sujeitos deste mesmo modelo. A partir deste
embasamento em modelos, a autora afirma a existência da normalidade e da
anormalidade (funcionando como pontos extremos que se complementam e justificam
mutuamente). A diferenciação é, assim, evidente e incontestável, mas isso não indica, necessariamente, a existência de uma situação conflituosa, pois ela poderia se expressar
através da diversidade significativa, que seria não apenas positiva, mas desejável. Em
suma, a diversidade significativa representaria a riqueza das relações entre os diferentes,
nas quais essa heterogeneidade comporia uma espécie de e mosaico em que cada parte
(por mais diferente que fosse) se encaixaria nas demais e formaria um desenho único.
O grande problema da diferenciação, no entanto, seria o seu tratamento através
da estigmatização e da patologização dos desviantes4
, conceitos referentes,
respectivamente, aos estudos de Erving Goffman e de Gilberto Velho. As pré-
conceituações funcionariam como aprisionamentos, reduzindo as possibilidades de vida
e atuação dos indivíduos desviantes tanto através do rotulamento quanto da sua
apropriação como algo menor, menos produtivo ou inadequado. Os Preconceitos
funcionariam como filtros da percepção, que moldariam e coloririam o olhar do sujeito
preconceituoso, depositando uma série de demandas e comportamentos esperáveis no
alvo de seu Preconceito, de forma que as relações passam a se concretizar com os
estereótipos, e não com os indivíduos. Todas as pessoas possuiriam estes filtros, de
forma que a realidade é sempre compreendida a partir de uma interpretação pessoal (que
advêm das experiências, do conjunto de pensamentos e da história cultural do grupo
social do qual o sujeito faz parte). Contudo, ainda que a interpretação seja individual,
sofre uma forte influência do que é compreendido como uma verdade para a sociedade,
das verticalidades, sobrando pouco espaço para a espontaneidade e para os pensamentos
livres.
Assim, é possível afirmar que o lugar, enquanto espaço constituído por
elementos verticais e modelado por elementos horizontais, é determinante na formação
do preconceito e na definição do seu alvo, tendo em vista que o preconceito tem a
função de regimentar e fortalecer a organização social vigente. Cabe pensar, então, que
elementos poderiam ser adicionados aos lugares para que a modelagem os tornassem
lugares de maior inclusão. E não se pode pensar em outros elementos que não a
experiência e a reflexão.
A experiência, geradora de significado e de transformação, é a arma maior
contra o preconceito, pois ele é justamente baseado na falta de conhecimento sobre
determinado assunto ou grupo. A experiência possibilita, assim, a construção de um
pensamento próprio, desde que seja acompanhada pela reflexão e pela busca de
entendimento. Neste contexto, as práticas inclusivas escolares, alicerçadas em um
currículo e em planos de estudos bem construídos e frutos de reflexão entre o grupo de
docentes, aparece não apenas como um meio de obtenção de oportunidades de vida
mais igualitárias, mas também como a possibilidade de amenização das práticas
preconceituosas e do aliamento aos mitos e às crendices socialmente construídos.
Fonte: http://www.agb.org.br
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