“Na vida só há um modo de ser feliz. Viver para os outros.”

Léon Tolstoi

domingo, 7 de junho de 2020

Moças e rapazes cuidam, também, no isolamento social, por Paulo Fernandes Silveira

Nos anos noventa, trabalhando como voluntário com crianças de 0 a 7 anos na unidade de acolhimento Sampaio Viana, no Pacaembu, presenciei outras meninas e meninos cuidando de meninas e meninos ainda menores.

No livro a Trégua, Primo Levi relata as experiências dos prisioneiros de Auschwitz, assim que os aliados chegaram ao campo de concentração e extermínio. No primeiro momento da odisseia em direção à liberdade, os sobreviventes ficaram retidos no próprio campo, que fora transformado, segundo Levi, “num imenso lazareto”. Numa espécie de quarentena involuntária, os sobreviventes receberam os primeiros socorros de médicos e enfermeiras russas. Nos quartos enormes repletos de pacientes, por vezes, havia um único médico de plantão, e nenhuma enfermeira, “eram os próprios doentes que deviam responder às suas necessidades mais urgentes, e àquelas de seus companheiros mais graves” (LEVI, 1997, p. 27).
No segundo capítulo do livro, Levi conta a história tocante da relação dos meninos Hunek, de quinze anos, e Hurbinek, de três anos. Nas palavras de Levi: “Hurbinek era um filho da morte, um filho de Auschwitz” (1997, p. 28). O nome lhe foi atribuído pelos sobreviventes do quarto, uma referência aos sons que o menino emitia, uma vez que as palavras lhe faltavam. Paralisado dos rins para baixo, tinha as pernas atrofiadas, adelgadas como gravetos, “mas seus olhos, perdidos no rosto pálido e triangular, dardejavam terrivelmente vivos, cheios de busca de asserção, de vontade de libertar-se, de romper a tumba do mutismo” (LEVI, 1997, p. 29). Somente Henek sabia cuidar de Hurbinek. Algumas meninas polonesas do quarto bem que tentaram, mas, ainda que fossem demasiado doces e carinhosas com a criança, evitavam-lhe a intimidade. Por sua vez, tranquilo e obstinado, Henek “sentava-se junto à pequena esfinge, imune à autoridade triste que dela emanava; levava-lhe a comida, ajustava-lhe as cobertas, limpava-o com mãos habilidosas, desprovidas de repugnância” (LEVI, 1997, p. 29-30). Após uma semana de cuidados, Henek conseguiu colher uma palavra de Hurbinek: matisklo. Teria sido um agradecimento ao amigo que lhe chegara nos últimos dias de vida ou de sobrevivência?

Nos anos noventa, trabalhando como voluntário com crianças de 0 a 7 anos na unidade de acolhimento Sampaio Viana, no Pacaembu, presenciei outras meninas e meninos cuidando de meninas e meninos ainda menores. As crianças, retidas ou guardadas naquela unidade da antiga FEBEM, eram separadas em diferentes quartos conforme suas idades. Havia um quarto repleto de crianças que precisavam de cuidados especiais, o Cantinho. Nos finais de semana, os voluntários ficavam encarregados de cuidar das meninas e meninos nas horas de lazer. A primeira coisa que as mais velhas faziam, assim que abríamos seus quartos, era correr até os quartos onde ficavam seus irmãos mais jovens. O melhor lazer para elas era cuidar e brincar com seus pequenos.

No final dos anos 90, a unidade Sampaio Viana fechou. Depois disso, convidado pela mãe de uma aluna de uma escola secundária onde eu lecionava filosofia, fui trabalhar como voluntário no abrigo Lar Vila Acalanto. Apesar do abrigo acolher poucos irmãos, nesse espaço, também presenciei meninas e meninos bem cuidarem dos mais novos, especialmente, dos bebês.
Nos últimos 8 anos, ajudo minha companheira em suas atividades como coordenadora da Pastoral da Criança na favela do Moinho. A Pastoral atende crianças de 0 a 6 anos. Muitos bebês chegam nos encontros promovidos pela Pastoral nos braços dos seus irmãos mais velhos. Como na história contada por Levi sobre Henek e Hurbinek, os rapazes cuidam muito bem dos menores: são responsáveis por sua higiene, por sua alimentação, e os levam na Pastoral, na creche ou na escola, além de ficarem atentos nos momentos em que as crianças brincam no campinho. Com essa ajuda das filhas e filhos mais velhos, as mães conseguem passar o dia inteiro no serviço.
Nesses tempos de pandemia e isolamento social, muitas mães continuam trabalhando, principalmente, aquelas que atuam como empregadas domésticas. Com a interrupção das atividades presenciais nas creches e nas escolas, a carga de trabalho das moças e rapazes que cuidam dos seus irmãos menores redobrou. Não faltam competência e gentileza nessas tarefas desempenhadas por elas e eles, mas, faltam outras perspectivas em suas odisseias particulares e coletivas por justiça social e liberdade.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)
Referências bibliográficas.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Palavras para Hurbinek. In. NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p. 99-110.
 LEVI, Primo. A Trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


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