“Na vida só há um modo de ser feliz. Viver para os outros.”
Léon Tolstoi
segunda-feira, 5 de março de 2012
Cidadania e criança e adolescente
Falar em cidadania é falar em direitos. Portanto, falar em cidadania de crianças e adolescentes é dizer que crianças e adolescentes têm o direito a ter direitos. A partir da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), crianças e adolescentes devem ser consideradas sujeitos de direitos. Mas, não é só. Além dos direitos fundamentais inerentes a toda pessoa, são portadores de direitos especiais em razão da sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. É nesse registro da peculiaridade, essa espécie de duplicidade de direitos, dada pela lei, que se pode falar em cidadania de crianças e adolescentes. Trata-se de uma cidadania particular e que, portanto, requer desafios próprios. De fato, é preciso superar a visão já enraizada em nossa sociedade de que pela idade criança e adolescente são cidadãos pela metade. Apesar de sofreram algumas restrições, pela própria idade, as restrições não se referem aos direitos fundamentais e aos direitos especiais previstos no ECA.
Ao colocar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e afirmar a existência de uma cidadania especial para tais sujeitos busca-se estabelecer um contraponto à noção de que crianças e adolescentes são meros objetos de intervenção. Não se trata de um mero jogo de palavras entre sujeitos e objetos. A passagem de objetos para sujeitos de direitos significa a mudança de concepções e de princípios norteadores de práticas que procuram sim mudar a realidade. Mas, afinal, o que mudou?
Antes da Constituição Federal e do ECA, vigorava, por lei (Código de Menores), a doutrina da situação irregular. Por essa doutrina, crianças e adolescentes só apareciam para o Estado quando estavam em situação de risco social (situação de rua, de abandono, de péssimas condições sociais).
E o tipo de intervenção que recebiam não respeitava à dignidade humana, pautava-se no mero assistencialismo, daí se falar que crianças e adolescentes eram meros objetos. Sob o argumento da proteção, crianças em situação de rua eram encaminhadas a instituições de privação de liberdade. Nessas instituições, misturavam-se crianças em distintas situações: crianças abandonadas, com transtorno psíquico, que praticaram algum crime etc.
A partir da Convenção Internacional dos direitos da criança e do adolescente de 1989, uma nova doutrina surgiu. Trata-se da doutrina da Proteção Integral que foi adotada no Brasil pela Constituição Federal e, de forma mais detalhada, pelo ECA. Criança e adolescente são definidos não mais pela situação que se encontram, mas por serem titulares de direitos. Nesse sentido, o ECA, antes mesmo de detalhar o que fazer em casos das crianças e adolescentes estarem em situação de risco social, trouxe um rol de direitos. Sua primeira parte é sobre os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. Assim, apresenta uma extensa lista: o direito à vida e á saúde, o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade, o direito à convivência familiar e comunitária, o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, o direito à profissionalização e à proteção no trabalho. É por estabelecer uma gramática de direitos especiais às crianças e aos adolescentes que se pode falar que a proteção integral garante a cidadania a esta parcela da população em especial. Tais direitos são colocados levando-se em consideração a condição peculiar desses sujeitos de direitos, daí se falar em cidadania especial.
A mudança realizada foi de fundo. Comparando, por exemplo, o atendimento dado ao jovem que praticou um delito nesses dois momentos a diferença é gritante e retrata bem o que significa tratar o adolescente como cidadão ou como objeto tutelado. Antes, o jovem que cometia um crime não era submetido a um procedimento com defesa garantida, com todas as fases detalhadas e previamente estabelecidas. Muitas vezes era privado de liberdade sem ter cometido um delito, bastando a “situação irregular” que se encontrava para justificar a medida. Com o ECA, essa situação mudou. Previu-se o procedimento adequado a ser tomado em cada situação seja a prática de ato infracional seja a situação de risco social entre outras. Previu-se o respeito às garantias processuais, como ser informado sobre a acusação, apresentar defesa, garantir a participação e a informação à família, entre outros direitos.
Assim, dizer que criança e adolescente são sujeitos de direitos e, portanto, cidadãos, além de afirmar seu novo estatuto jurídico, sua nova identidade, busca contrapor a uma situação que se pretende superar na qual criança e adolescente eram tratados como objetos de tutela seja por parte da família, da sociedade e do próprio Estado. É desta forma que a cidadania da criança e do adolescente deve ser compreendida. Crianças e adolescentes não são o futuro, como muito já se propagou, ao contrário, são o presente. E o presente é imediato, já que criança e adolescente têm prioridade absoluta, em razão da condição de serem pessoas em desenvolvimento. Isso implica que família, a sociedade e o Estado estão obrigados a efetivar os direitos de cidadania a esta parcela da população. A responsabilidade é de todos. Essa foi a aposta feita pela lei.
Todavia, atualmente, passado o momento histórico dessa conquista que foi a criação do ECA e a adoção da doutrina da proteção integral, muitas críticas são feitas ao Estatuto, muitas no sentido de apontar que se trata de uma lei muito boa, mas que não é aplicada e que, inclusive, estaria mais adequada a países ditos do primeiro mundo.
Critica-se, assim, como conseqüência, a cidadania de crianças e adolescentes que seria apenas uma cidadania de papel, pois não conseguiu sair da letra da lei para operar mudanças nas práticas cotidianas. Vê-se, muitas vezes, o tratamento desta parcela da população ainda pautado na concepção de objetos de intervenção.
De fato, quando olhando para a realidade percebemos que constantemente criança e adolescente não são tratados como cidadãos e seus direitos são freqüentemente violados ou não promovidos. Mas, não podemos esquecer que a lei tem uma função pedagógica: a lei estabelece direitos quando estes não existem na realidade com o sentido de direcionar nossas práticas ao parâmetro colocado pela lei. Como disse o professor Emílio Garcia Mendez, a lei é uma eterna tensão entre os direitos e a realidade. Ora, como coloca o professor, de que adiantaria uma lei se os direitos de cidadania existissem na realidade?
Desta forma, afirmar a cidadania para criança e adolescente faz toda diferença. É claro que se deve reconhecer o caráter particular desta forma de cidadania, mas negá-la é deixar de ter o parâmetro estabelecido pelo ECA e, principalmente, pela doutrina da proteção integral, o que impossibilitaria desde já qualquer prática de mudança da realidade.
Ilanud é autor deste texto e parceiro do Pró-menino/RISolidaria.
Fonte:http://www.promenino.org.br
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